quinta-feira, 12 de março de 2015

Romana


Era uma cidade suja e feia, pensava Romana olhando pela janela. Como fora parar ali? Se perguntava em pensamento, sentia-se indisposta até para pensar alto. Deve ter sido idéia do Augusto, o traste com quem fora casada. Só essa imagem vinha à cabeça de Romana quando pensava no finado marido. Um traste, uma maçaroca de roupas emboladas em um corpo gordo e pesado. Nunca teve classe, nem para entrar e nem para sair, chamava sempre a atenção de todos como uma banda que passava desordenada e desafinada.

Quando pensava no corpo gordo de Augusto sobre ela na noite de núpcias, sua primeira vez, tão magra e pura, sentia tristeza, mas ainda assim acendia um cigarro para esquecer.

Abria um pouco mais a janela para tentar se distrair com a gentalha que cruzava a avenida. Via Rose e o marido, um sujeito magro e alto, sabe-se lá o nome do tal.  Vinha fazendo malabarismo com as quatro crianças penduradas e mais as sacolas do mercado. Ainda enxergava bem, pensava. Podia ler o nome do estabelecimento na sacola e podia também notar que uma das crianças do vizinho era triste, não ria e nem se mexia como as outras. Lembrou-se de Vera, a filha do meio.

Vera, que nome estranho, nunca gostara. Foi escolha do Augusto, aposto. Homens têm uma mania de escolher nomes que não caem bem. Preferia que se chamasse Alva. Acreditava que a menina era triste por causa do nome que carregava. Rolava no chão aquele homem corpulento, fazia de tudo para agradar a filha. A menina se assustava de ver Augusto tão grande e barrigudo se atirar ao chão. Quando percebia que o pai estava bem e só fazia graça, abaixava a cabeça e dava um sorriso tímido com os olhos fixados em seu rosto suado e sorridente. Era como um cão, pensava Romana, um cão, sem raça e nem pedigree, um cão babão como aqueles que carregam barris na neve à procura de quem salvar.

Não sabia por que pensava em Augusto, devia era estar muito debilitada mesmo para ter pensamentos tão nebulosos. Já era quase hora da filha chegar. O cheiro do cigarro precisava sumir antes que a porta abrisse e por ela entrassem Dora e o pequeno Benjamin. Fazia três anos que vivia com a filha mais velha e o neto naquele apartamento de frente para a avenida das torres. Não tivera escolha, Augusto só deixou a aposentadoria, dívidas e os três filhos. 

Abanava o ar para dissipar o odor e a fumaça enquanto pensava. Semana que vem seria aniversário do finado. Faria Augusto 83 anos. Partiu jovem aos oitenta, coitado. Até que viveu bem pelo peso que tinha. Em dia de aniversário ele queria festa, fosse o dia dele, o dela, o dos filhos. Comprava um bolo grande para sobrar bastante. Acabava de comer o bolo madrugada adentro depois que a festa tinha fim e todos estavam dormindo. Comprava sempre um presente caro com um dinheiro que não tinha.
Escorreu uma lágrima de Romana. Devia ser a poeira daquela cidade imunda, constatava logo.

Quando foi chamada no hospital para receber a notícia parou de sentir as pernas. Disse aos filhos que não podia ir naquele dia, mas que no dia seguinte veria o marido. De rabo de olho percebia os filhos se entreolharem e a tristeza que assombrava cada um. Quem falaria? Quem seria o primeiro a dizer que a última visita teria que ser feita naquele mesmo dia? Quem arrancaria a mãe que olhava pela janela e fingia não perceber que chegava a hora da despedida? As pernas? Estavam boas, podia andar por horas até que cansassem, não tinha dores nas costas e nem na bacia. Doía sim uma parte de Romana que nunca fora tocada até então.

Naquele momento, cercada pelos filhos lembrou-se do cartão do último aniversário escrito pelo marido: “Mesmo que a noite pareça sem fim, você faz um sol dentro de mim”.

Gustavo foi o primeiro que disse. As palavras saíram da boca do filho mais novo como água escorrendo, tortuosa, ininterrupta, molhando tudo conforme avançava. Começou a se sentir mergulhada, afogada, não podia respirar, não podia se salvar. Augusto morreu.

Apagou-se o sol, fugiu o cão, saiu o peso de cima de seu corpo magro. Um dia o marido prometera que jamais a deixaria, era então Romana jovem e cheia de insegurança. Ele a apertou entre o peito gordo e a envolveu. Sentiu-se segura e firme.

Começou a maldizê-lo após sua morte. Passava horas na janela vigiando a vizinhança. Voltou a fumar escondida. Procurava em cada lembrança um jeito para desqualificar o marido e empurrar suas memórias para longe. Desejou até mesmo esquecer. Tantas velhas feito ela se esqueciam das coisas, viviam perdidas em mundos sem lembranças, sem temer a morte, sem sentir saudade, sem falar de amor.

Escutou a porta da cozinha se abrir. Era Dora, a filha de bom nome que trazia com ela Benjamin, um menino gordo com o sorriso do avô, que mal entrava em casa e corria para abraçar Romana, suado. Ela colocava o menino no colo e mostrava para ele a rua, a avenida, à cidade feia e suja. Antes de o garoto dormir, Romana contava as histórias do avô, retratando-o como um homem forte, sensível e engraçado, que rolava no chão só para fazer os filhos sorrirem.

A filha vigiava a mãe, temerosa sobre sua saúde. Rezava pelo pai e pedia ajuda, sentia muita saudade. Dora e os irmãos viam a mãe falar do pai e sabiam que era apenas um jeito de lidar com a dor. Eles se amaram enquanto estiveram juntos, pensava.

Deitada na cama, Romana fechava os olhos e desejava esquecer. Não queria mais pensar no traste, nem no amor e nem em maldizê-lo. No fundo sabia que a vida fora boa para ela. Respirava fundo. Abria a gaveta e lia o cartão: “Mesmo que a noite pareça sem fim, você faz um sol dentro de mim”. Amanhã é mais um dia pintado na noite sem fim.


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