terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O Homem Teimoso



Era um homem teimoso. Sua teimosia chegava antes de si. Um olhar adentrava a sala dizendo não.

Pegava sempre os mesmos caminhos. Comia sempre no mesmo horário. Tinha lugar marcado na mesa. A família se habituara, fingiam não se importar mais com as teimosias do dia a dia.

Àquela altura da vida não mudaria. Suas pernas já tremiam a cada passo, suas mãos bem marcadas dificultavam o dedo em riste. Usara demais, apontara para tantos.

Os filhos ensinavam aos netos a serem maleáveis. A esposa suspirava antes de cada fala do sujeito teimoso e vez ou outra virava os olhos e pronunciava as palavras que seriam ditas. Já sabia, seriam as mesmas palavras, a mesma entonação e ao mesmo lugar levariam.

Teimava desde pequeno. Escolhia as brincadeiras, era o dono da rua. Sua vontade era seu trunfo, bastava querer e pronto. Muitos abriam mão das escolhas a favor do homem teimoso, só para não vê-lo apelar, coisa que fazia sem esforço.

Um dia o homem teimou uma teimosia acalorada com o caixa do banco. Esse moço ainda tinha a virtude da paciência e explicara diversas vezes a posição da instituição a qual servia. Não era possível fazer a teimosa operação.

O homem teimoso, percebendo que sua teimosia estava prestes a ser vencida, até mesmo ignorada, fez uso de um recurso extremo. Tossiu, tossiu tanto que logo lhe trouxeram água fresca e o abanaram. Depois sentado em uma cadeira gorda, já mais calmo pediu a presença do gerente. O homem explicou à gerência que abrira sua conta ali antes mesmo do nascimento do moço grosseiro que o atendera ainda há pouco.

- “Qual senhor?”
- “Aquele ali...”, tentando apontar o dedo em riste, mas sem sucesso.

O gerente pediu que se acalmasse e que desta vez, apenas desta vez poderia fazer a operação, mas que aquele tipo de ação tinha sido cancelada pela companhia no mês anterior, porém a julgar pelo mal tratamento recebido dentro da agência e pela longa relação do homem e a instituição financeira, não custaria nada atendê-lo.

O homem teimoso sorriu. Já na saída lançou um olhar vitorioso sobre o moço no caixa, que nada entendia.

Voltava para casa satisfeito de sua teimosia. Vencia pelo cansaço do outro, mas vencia. A sensação de vitória percorria as pernas e os braços do homem teimoso, dando pequenos choques, salivando a boca e disparando o coração. Era forte, uma descarga de energia tremenda, fazendo dele o dono das ações, das suas, das dos outros, o senhor da verdade e das escolhas. Cada pedido era atendido, cada insistência era obedecida, já não precisava tanto do dedo em riste, pois tinha agora o peso da idade a seu favor. "Farão por mim o que eu quiser...", pensava enquanto caminhava para casa. Iludido e desatento, não notou o carro da funerária, nem a buzina, nem o grito. Morreu ali o sujeito teimoso.

A família providenciou o velório o mais rápido possível. A filha mais velha escolheu as flores, suas preferidas para se despedir do pai. O filho do meio decidiu o caminho do cortejo, mais longo e com menor tráfego, talvez bem diferente do que preferiria o pai. A esposa fez questão de escolher o terno do marido, que há muito não era usado, “- Ele não gostava, é uma pena...”, dizia aos filhos enquanto engolia o choro. A caçula resolveu que após o velório o pai seria cremado, coisa impensada pelo próprio, que julgava que todo corpo deveria ser enterrado e pronto. Mas a cremação era mais prática, defendia.

No salão, o corpo era velado. Entre tristeza, conversas soltas e anedotas familiares, que narravam às desventuras do homem teimoso, havia certo ar de conivência entre todos. Sabia-se que o certo a fazer naquele momento era exaltar as qualidades daquele que jazia em repouso eterno.

Assim, ao final, encerrada a cerimônia, com uma urna em mãos fria e cinza, era o homem teimoso, agora a lembrança de um homem de opinião, forte e incansável, orgulho da família, como haveria de ser. Vencia.


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