quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Cobrança





Não era para ser um dia comum. O sol brilhava demais, o vento se fazia alto e forte demais, e o convite que viria a seguir seria por demais inusitado.

Em uma casa com tantos, era mesmo de se espantar, que dentre seus onze filhos, Manuel o escolhesse para acompanhá-lo. O menino iria, de qualquer maneira de bom grado, não poderia negar-se a um convite como aquele.

Colocou suas sandálias apressadamente, engoliu um copo de leite e correu.

 O som da buzina da velha Rural Willys anunciava seu atraso. Para acompanhar o forte estampido, vinha de carona o rosto de Manuel proclamando a quem o fitasse a que viera ao mundo. Tinha pressa.

Já a caminho, rumo ao desconhecido, o menino respirou fundo. Ensaiava dentro de si, como poderia sem despertar maiores precipitações, tomar conhecimento sobre o destino ao qual era conduzido.

Manuel era mesmo um bom homem, bom pai, nordestino e político abrasado. Um homem de gênio imutável, e por isso digno do respeito e também do temor que despertava em seus convives, principalmente entre os filhos numerosos.

Já o menino, era mesmo um menino. Filho de Manuel, descendente de nordestino, com grande respeito e temor pelo pai, sem discernimento político, e curioso como todos os meninos. Resolveu arriscar. Olhou para o pai de relance e perguntou dissimulado, como se pergunta sobre o tempo ou sobre o avião,  _“Para onde vamos?” Manuel optou por não responder. Continuou compenetrado ao volante e, após muitas voltas, parou em frente a uma praça, bem em frente a um prédio baixo.

Desceu do carro e foi categórico:  _ “Fique aqui e não desça!” O menino obedeceu. Escondeu sua curiosidade em algum lugar próximo ao peito, e contentou-se em admirar o vendedor de sorvetes que atraia os passantes com músicas e sorrisos congelados, mais parecia um boneco de marionetes, riu-se.

Já fazia cerca de vinte minutos que Manuel descera do carro, o calor fazia o menino transluzir e pensar se fizera mesmo o certo aceitando o convite, e ainda mais, se deveria ter concordado, sem se pronunciar, a ficar dentro do carro por tanto tempo.

Enquanto se distraía em pensamentos das mais variadas ordens o menino foi interrompido, juntamente com o vendedor de sorvetes e os demais passantes, com gritos desesperados que vinham do prédio baixo.

Podia-se ouvir de longe. Um homem clamava por misericórdia e arrebatava a atenção de todos que se dirigiam apressados e curiosos rumo ao alarido.

Em meio a tanto tropel, o menino reconheceu a voz do pai, que veio forte, alta e seguida de um tiro. Correria, gritos, revoada de pombos, tudo se abraçou diante de seus olhos. Um abraço rápido e apertado.

O desespero tomou conta do menino, que agora sim, vira que foi estupidez aceitar tal convite. Desceria do carro em meio à tamanha confusão? Não foi preciso. Lá vinha Manuel, com a arma em punho, arrastando um homem ajoelhado para fora do edifício.

_ “Você vai ter que me pagar, não tem desculpa cabra safado!”, seguido de, “Por favor, Manuel, não me mate, tenha piedade Manuel”!

Medo, vergonha, curiosidade e arrependimento, todos esses sentimentos dançavam na cabeça do menino, uma dança arrastada e desordenada. Ele queria descer do carro, ele queria pedir ao pai para parar, ele queria tomar um sorvete, afinal, agora estava ainda mais quente o dia.

Após muito ranger os dentes e praguejar, Manuel volta para o carro balbuciando palavrões incompreensíveis. Encontra seu filho encolhido entre o banco do carona e o painel frontal. Liga a chave e segue a toda.

O menino se senta novamente, encara as próprias mãos em seu colo e engole todas as palavras que gostaria de dizer naquele momento. Foram parar em algum lugar de seu estômago.

Manuel parece se acalmar, respira fundo e diz aliviado, _ “Vou te pagar um sorvete!”. Dito e feito. Desceu novamente do carro, dessa vez com um andar mais leve, até um pouco frouxo, e voltou com um sorvete de creme, que segurava com a mesma mão que há minutos empunhava uma arma.

O menino segurou o sorvete e arriscou uma primeira lambida, sem gosto e sem graça, só conseguia pensar na cena que presenciara. Olhou de rabo de olho para Manuel que esboçava agora um riso debochado enquanto dirigia. Distraiu-se e no momento em que o carro passou por uma lombada, viu sua bola de sorvete voar pela janela estatelando-se no asfalto quente e ficando para trás.

Manuel se virou para o filho e perguntou com aquele olhar que dizia tanto de si mesmo, _ “Cadê seu sorvete menino?” O menino olhou para Manuel, lembrou-se de tudo o que se sucedeu, do pai com a arma na mão, do fogo que saía de suas narinas, do suor daquele dia inflamado e respondeu prontamente, _ “Estava tão gostoso que eu chupei tudo!”, afinal, a arma ainda estava quente na cinta de Manuel.

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A Cobrança de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

4 comentários:

  1. Muito bom Juana...Estou orgulhosa...Dia desses conto lhe uma façanha minha ...do Manoel e da Cici.. aí vc põe no papel...Você é muito Correia...e isso me faz extremamente feliz !!!!Bjs minha linda do "Zóio de Gato"...era assim que seu avô me chamava...nunca pelo nome....

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  2. Parabéns, Ju. Vc escreve lindamente. Orgulho de vc.

    Anninha

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  3. Fiquei com gosto de quero mais. Adorei a leitura.

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  4. Obrigada queridas minhas!!! Vai ter mais!! Bjim!!

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