quinta-feira, 24 de outubro de 2013

ESTOU DE VOLTA

Pois é, muito tempo depois e cá estou, pronta para retomar o que mal comecei. Mas como todo mortal, aproveito a chegada de 2015 para uma nova tentativa.
Não é fácil encontrar tempo para o que nos dá prazer, não é mesmo? Porém, o que nos dá prazer é o que nos faz feliz!
Estou carente de novas histórias sem tamanho e por isso resolvi colocar a mão na massa!
Nada melhor para começar o ano do que uma história fresquinha junto de uma novidade, o blog Historinha Sem Tamanho vai entrar no ar este ano, serão belas historinhas para ler para os pequenos num click!
Ótimo 2015 para todos!!

sábado, 5 de outubro de 2013

A Conversa



Dava pra ver o sol de lá. Era a única coisa que se podia ter certeza.

A lua, nem sempre se podia ver. Pelo menos não tinha sido vista em quase nenhuma daquelas noites.

De quando o moço estava preso, hoje velho, se lembrava bem. Lembrava de ver o sol, não ver a lua e do amigo argentino.

A prisão daquele tempo, se comparar com o que vemos hoje, é difícil dizer se era melhor ou pior. Mas com o neto ali, perguntando, tinha de dar uma resposta.

"_Era diferente"! Pronto, quem sabe assim parassem as perguntas. Mas o menino era insistente, queria saber era se o avô tinha apanhado. Via na televisão que gente presa apanhava, que não comia direito, que não tinha cama pra dormir e que dormiam todos atravessados e sem espaço.

“_É, era assim mesmo!” O avô achou melhor concordar com a maior parte, evitaria perguntas novas.
“_Mas e as visitas vovô? Podia ou não podia? Vi no jornal que a mulher foi visitar o marido e levou uma arma pra ele. A vovó levou uma arma pra você?”

A avó em questão escutava tudo de ouvido espichado da cozinha. Fingia que estava picando cebola, mas prestava mesmo era para ouvir a conversa.

Ela não ia nunca, não visitava, dizia que tinha medo. Mas se o avô contasse isso ao menino ia deixá-lo triste. Sem falar que conhecia a esposa que tinha e achou melhor não arriscar, disse só: "_Nunca me levou uma arma."
O menino riu como se já soubesse. A avó suspirou aliviada.

Quando o velho ameaçou levantar da cadeira de balanço, o neto disparou: “_ Mas e o argentino que você falou? Tava preso por quê? Ele não devia ter ficado preso lá no país dele?”

O avô logo se lembrou do argentino dizendo: “_Podia ter ficado preso no meu país, mas lá já estaria morto”.
"_Devia, devia sim. Mas fez seu crime aqui, daí não teve jeito!" Respondeu mais devagar dessa vez, como se tentasse se lembrar
.
A avó lá da cozinha falou sozinha bem baixinho: “ _ Qual era o crime dele vovô?”
O menino, como num eco, disse: “_Qual era o crime dele vovô?”

Se o avô dissesse que o crime do argentino era pensar demais e depois escrever as coisas que pensava, não ia adiantar nada, ia deixar o moleque cheio de perguntas novas e o cheiro de cebolas fritas já estava dando sinal de comida pronta
.
_ “Ele abriu a boca quando não podia. Agora chega de conversa fiada, que essas coisas já passaram faz tempo! Você não tem nada pra fazer não?” Disse já se levantando.

O menino olhou pra fora, lá pra calçada. Fitou a rua vazia por um tempo, olhou novamente para o avô e disse tranqüilo:
“_ Eu tenho que escrever umas coisas que eu penso, da pessoa que mais gosto pra aula de história.”
 O avô passou a mão na barba branca e seca e respirou fundo. A avó, que escutara tudo com seu ouvido espichado, esticou o pescoço para ver como o velho sairia dessa.

Passou a mão nos cabelos do menino e arriscou: “_Se você quiser, eu te conto um pouco mais da prisão, do argentino e das coisas que passamos juntos.”

_ O menino olhou para o avô, se levantou rapidinho e falou calmamente: “_ Não vovô, tudo bem, tenho que esperar a vovó terminar de fazer o jantar pra escrever sobre ela, só estava passando o tempo mesmo.”

Naquela noite a mesa de jantar estava silenciosa. O avô olhava para a avó que sorria demasiadamente, enquanto o menino provava as mais doces cebolas fritas de sua vida. Não dava pra ver a lua.

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A Conversao de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

Arte do Blog

Algumas pessoas têm perguntado sobre os desenhos usados no layout desse blog. Quem leu o meu primeiro post, Chão Colorido, deve ter imaginado que os desenhos expostos aqui são dele, do meu pai. O nome dele é Jacinto, já ilustrou muitos livros, trabalha com artes gráficas e publicidade e já teve a honra de ilustrar para autores como o maravilhoso poeta Manoel de Barros. Como eu disse naquele conto, ele tem várias fases e essa, desses desenhos, me encanta especialmente! Vou postar desenhos novos por aqui, ilustrando meus contos, espero que gostem!

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A Cruz de Sabão

O menino corria tão intensamente, que entre uma pedra e outra que caíam do bolso, deixava para trás, além de suor e poeira, pedaços de borracha que soltavam dos chinelos velhos.

Apressado, o garoto não olhava para trás. No pensamento confuso, lembrava poucas palavras. Como era mesmo? “Santificado seja o teu nome”, ou “seja o vosso nome”? Achava mais bonito que fosse “vosso nome”, gostava daquele jeito de se referir a ELE, “vosso”, “estais”. Não se lembrava de ver ninguém falando assim. Por outro lado não poderia perguntar em casa, lá ninguém gostava dessas coisas que “não existem”, existem?

O professor tinha dito que se falasse o texto o todo, era possível ser ouvido. Mas é tão longo, difícil lembrar todas as partes.

Passou pelo portão sem tocá-lo. Correu para os fundos da casa e pegou uma caixa escondida em meio às roupas sujas da família. Embrulhou cuidadosamente em uma toalha e entrou.

Parado do lado de dentro olhou com atenção o caminho que o levaria ao pequeno cômodo. Viu um gato, dois gatos, a avó parada em frente ao fogão. Mais adiante viu uma irmã, duas irmãs, mais um irmão, todos distraídos.

Se pisasse devagar, ninguém escutaria, mas se fosse rápido, seria mais natural, do seu jeito de menino levado e assim ninguém daria atenção ao seu propósito.

No primeiro passo pensou: _ “Seja feita a vossa vontade. Quando deu por si já estava lá, só ele, a caixa e o pequeno altar. Bem sabia que privada não era altar, mas se abaixasse a tampa poderia colocar a caixa em cima e daria certo.

Abriu a caixa e tirou um embrulho. Com a toalha suja secou o suor do rosto, das mãos e forrou o altar improvisado. Desembrulhou a peça e a colocou sobre a tampa da latrina. Ajoelhou-se, com as mãos molhadas e começou a moldá-la. Já trabalhava com a peça de sabão há alguns dias. Já estava quase tomando a forma de uma cruz, tal qual a da igreja, a da história do Jesus contada nas aulas de religião, que só de lembrar lavavam os olhos do menino. Queria era terminar logo para poder usá-la enquanto falava a reza inteira. Quem sabe assim Ele ouviria? E se ouvindo o menino, Ele trouxesse o pai de longe? E se quando ouvisse e visse a peça pronta Ele fizesse a alegria tomar conta da casa, dos irmãos, da avó tão cansada e da mãe, e então todos passassem a acreditar no Jesus e não só na política. Será que o Jesus era comunista também?

Quando começava a pensar nas coisas que ouvira e nas histórias que aprendera, só de imaginar que tudo aquilo fosse verdade, quando os olhos molhados já não enxergavam a forma em cruz e quando as mãos se perdiam em meio a tanto sabão, alguém batia na porta.

Alguém batia na porta. Um irmão apressado precisava usar o banheiro. Um irmão que não sabia das coisas como ele e, que talvez, se soubesse, correria para contar a todos o quanto o menino era bobo de acreditar nessas coisas que “não existiam” e que “deixavam o homem fraco”.

Agora era tirar o sabão das mãos, embrulhar a cruz ainda úmida e desmanchar o culto, oculto.

Tinha que se lembrar de perguntar para o professor se era a “tua vontade” ou a “vossa vontade”, e porque sempre que lia no livro sagrado, Jesus era “Ele” com letra maiúscula. Se lembrasse, ia perguntar também se ele ouvia o pensamento, e se perdoava menino que jogasse pedra nas janelas vizinhas. 
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A Cruz de Sabão de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

domingo, 22 de setembro de 2013

O Querer de Maria


Começou com um querer pequeno, desses que a gente quer e sabe que pode querer sem susto. Olhou com carinha de anjo pra mãe, que se ria toda quando os olhinhos de Maria brilhavam daquele jeito. Quer filha? A menina queria, queria a boneca de pano de pernas compridas que podiam ser trançadas, um encanto.

Maria teve o pequeno querer. Brincou um pouco com ele, quis tudo o que podia naquela hora de novidade. Antes o sol dormisse, já estava a boneca tão querida outrora entregue ao tempo.

Maria teve muitos "quereres" como aquele, um livro de histórias comprido de onde pulavam castelos e princesas, um lápis de cor colorido que riscava um arco-íris em cada traço, um urso de pelúcia malhado com uma mancha vermelha no olho, um caderno cujas folhas se abriam e dobravam de tamanho e ainda um chocolate que não derretia.

A mãe de Maria já estava preocupada com tanto querer. Ficava parada olhando para filha, enquanto a menina se apaixonava e desapaixonava pelas coisas. Parada na soleira da porta vendo a filha brincar, ela pensava: Imagina quando for amor! Quando o querer de Maria tiver que encontrar o querer de mais alguém. Pior ainda, se esse “querer” deixar de querer da noite pro dia, aiaiai, coitada da minha filha!

O tempo passou e Maria cresceu, quis muita coisa até ficar mulher. Naquele mesmo dia, parada em frente ao portão, cobiçando o vestido da vizinha que se agitava no varal, viu o querer mais bem quisto que poderia. O moço passou pedalando sem pressa, olhando pra cima como se adivinhasse o tempo. Vem chuva? Veio. A chuva caiu bem forte, seguida de um vento que arrastava o vestido da vizinha pelo quintal. 

O vestido se prendeu a cerca, da cerca foi para o portão e do portão para o rosto do moço, que perdendo o controle, caiu bem em frente à casa de Maria.

A moça parou, com um sentimento confuso, vendo ali duas coisas que queria muito, bem aos seus pés, o vestido, agora ensopado e de cor duvidosa, bem diferente da que parecia ao agito do vento e o moço, com cara de susto, todo molhado e sem nome.

Maria correu para ajudar, pegou primeiro o vestido da mão do rapaz e pendurou no ombro. Depois levou o moço pra dentro de casa e pediu ajuda para a mãe.

Enquanto a mãe fazia os curativos no joelho e na mão do acidentado, Maria cobiçava. Sonhava até que vestia o vestido da vizinha e os dois dançavam juntos, rindo sem parar. Maria cobiçou, quis demais, sonhou alto e fez que o moço quisesse também.

Na agonia de querer sem fim, os dois se casariam três meses depois.  Maria queria um sim na frente do padre, queria festa e queria bolo, queria muito!

 Na hora de proferir a palavra que faria de Maria a mulher mais satisfeita de seu querer, o rapaz arredou. Gaguejou pra dizer alguma coisa, mas nada disse.

Maria quis sumir. Pensava como era possível, ela ali, tão linda e querendo tanto, estar de frente com o não querer.

Passaram os dias e Maria achou melhor acreditar que quem não quis foi Deus. Afinal, Deus só queria o melhor para ela e quem sabe não teria sido bom assim?

O problema era que agora Maria queria muito esquecer e percebia que quanto mais queria, lá estava o não querer, parado bem em sua frente, gaguejando.

A Mãe de Maria, acostumada com os desejos da filha, resolveu aconselhar: Maria querida, porque ao invés de querer tanto alguém, você não encontra alguém que lhe queira mais?

Foi o que a moça fez, tratou de procurar alguém que a quisesse, e quando encontrou, o levou diretinho para o altar só para ouvir o sim que esperava. Teve o sim, teve bolo, teve festa, teve casa nova, teve amor que cresceu com o querer do outro, teve filho e teve a certeza de que dá  pra ser feliz, mesmo sem querer.


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O querer de Maria de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A Nega

 Lá ia a nega, ia toda se balançando. Pra lá e pra cá, a nega se sentia. Sabia bem o corpo que Deus lhe dera. Passava pela rua como se fosse feita só pra ela, uma passarela pra nega desfilar. Vez e outra a nega jogava os cabelos pra trás, fazia um molejo torto que só ela sabia, aí sim, o longo cabelo caracol ganhava vida, parecia querer fugir da cabeça da nega. A nega então segurava suas madeixas, domava cada espiralado escravo e segurava com graça, fingia que nem se mexeu. Olhava para o lado de modo que nem ali estivesse, se balançava toda como se fosse bem natural. E era. Quem via a nega já conhecia, ela é assim, tal qual queira.
A nega seguia um trajeto, só que ninguém sabia de onde ela vinha, era um caminho de tarde, de ponteiro certo. Até já teve quem seguiu a nega, mas seguiu e não contou nada pra ninguém, talvez quisesse o sujeito guardar a nega só pra ele.
A verdade é que a danada sabia, atraía uma categoria que só, era dobrar a esquina pra arrancar todo mundo do costume. Era uma passada tão rápida, mas tão esperada ao longo do dia, fazia era muito, fazia alegria, e que dirá poesia nos dias mais embalados. Soltava uma olhada pro lado, para um gajo se enfeitiçar. Era só uma vez também, parecia que ela sabia quem era quem. Não repetia o gesto por nada, nem que fosse parada, desviava arrumando os cabelos, daquele jeito distraído, não era com ela nenhuma investida. E se o sujeito fosse mesmo atrevido, a nega fazia castigo e ficava até dois dias sem passar.
Cada um dava um nome pra ela, construíam versos secretos, ora Jurema, ora Flora, a quem jurasse que era Gabriela, só por causa daquela, cravo e canela, mas a graça mesmo se desconhecia.

A nega tinha além do molejo, um beiço grosso, regado a vinho escuro. Tinha um olho puxado ligeiro e um nariz exibido que apontava para o céu. Estava sempre de roupa ajustada, denotando os desenhos. Expunha só o que aguçasse, causando apetite, e até uma investigação fantasiosa. Não era alta, mas usava sapatos altivos. Ficava ainda mais distante dos que a miravam sem disfarce.

Enquanto a nega passava, ela era quem quisesse. Espreitava de longe seus admiradores, respirava firme e marchava. Depois se seguiam suspiros, burburinho comprido, cuidados mudos que a perseguiam por toda a carreira, até onde se pudesse alcançar.
Assim como seus admiradores a nega aguardava àquela hora do dia, quando largava a labuta, e a caminho de casa ia colher a estima que a ela, somente a ela competia. Ficava mais forte, mais linda ainda, pensava, separando o mundo de si.  Uma coisa era ela, outra era o resto, o resto todo. Mal passava e já sonhava com o dia seguinte. Se aprumava no juízo. Chegava em casa e abria as gavetas, escolhia a dedo os adornos de amanhã,  deixava tudo acertado, para si e para seu público, próximo e distante, separados apenas por uma indiferença fingida, por um molejo distraído, por um esconderijo inventado. Ia dormir pensando no estrago que faria na razão dos sujeitos.
Assim é a Gilda, é essa a alcunha da nega. Doméstica prendada, mulher de dois mundos, um dividido com seus devotos e o outro só seu, chaveado no peito. 
O único medo que assombrava a nega era que seu disfarce de musa viesse à tona um dia, pela traição de alguém. Ai, se alguém descobrisse que a nega era tal como as outras, habitando o mesmo mundo, mais uma dentre tantas, com nome, endereço e destino.
A nega despertava ciúme, tinha muita mulher de butuca, orando pra nega tombar, faziam uma reza estendida, acendiam vela e trocavam simpatias, tudo pra nega um dia sumir e deixar de passar. Torciam até pra nega encontrar um sujeito que botasse defeito no jeito da nega desfilar. Ai se existisse um valente que prendesse a nega em casa, mas de quem ela não largasse por outro nenhum no altar.
Já fazia tanto tempo que a nega passava. Como podia nunca ter cruzado sem se deixar notar? Era certo, lá vinha ela e logo atrás vinham todos. Um ato, um costume, um lazer, uma viagem misteriosa sem sair do lugar.  Logo, logo daria seis horas, e todos rumariam para suas casas para encontrar a realidade. Cada qual tinha a sua, e todos sonhavam juntos, os sujeitos, as esquinas, as mulheres despeitadas, todos ligados pela mesma fantasia. Todos querendo manejar o destino de Gilda, que sonhava também.  A nega sonhava em ser sempre ela, sempre bela, sempre a rota escolhida do desejo de alguém.

              
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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Cobrança





Não era para ser um dia comum. O sol brilhava demais, o vento se fazia alto e forte demais, e o convite que viria a seguir seria por demais inusitado.

Em uma casa com tantos, era mesmo de se espantar, que dentre seus onze filhos, Manuel o escolhesse para acompanhá-lo. O menino iria, de qualquer maneira de bom grado, não poderia negar-se a um convite como aquele.

Colocou suas sandálias apressadamente, engoliu um copo de leite e correu.

 O som da buzina da velha Rural Willys anunciava seu atraso. Para acompanhar o forte estampido, vinha de carona o rosto de Manuel proclamando a quem o fitasse a que viera ao mundo. Tinha pressa.

Já a caminho, rumo ao desconhecido, o menino respirou fundo. Ensaiava dentro de si, como poderia sem despertar maiores precipitações, tomar conhecimento sobre o destino ao qual era conduzido.

Manuel era mesmo um bom homem, bom pai, nordestino e político abrasado. Um homem de gênio imutável, e por isso digno do respeito e também do temor que despertava em seus convives, principalmente entre os filhos numerosos.

Já o menino, era mesmo um menino. Filho de Manuel, descendente de nordestino, com grande respeito e temor pelo pai, sem discernimento político, e curioso como todos os meninos. Resolveu arriscar. Olhou para o pai de relance e perguntou dissimulado, como se pergunta sobre o tempo ou sobre o avião,  _“Para onde vamos?” Manuel optou por não responder. Continuou compenetrado ao volante e, após muitas voltas, parou em frente a uma praça, bem em frente a um prédio baixo.

Desceu do carro e foi categórico:  _ “Fique aqui e não desça!” O menino obedeceu. Escondeu sua curiosidade em algum lugar próximo ao peito, e contentou-se em admirar o vendedor de sorvetes que atraia os passantes com músicas e sorrisos congelados, mais parecia um boneco de marionetes, riu-se.

Já fazia cerca de vinte minutos que Manuel descera do carro, o calor fazia o menino transluzir e pensar se fizera mesmo o certo aceitando o convite, e ainda mais, se deveria ter concordado, sem se pronunciar, a ficar dentro do carro por tanto tempo.

Enquanto se distraía em pensamentos das mais variadas ordens o menino foi interrompido, juntamente com o vendedor de sorvetes e os demais passantes, com gritos desesperados que vinham do prédio baixo.

Podia-se ouvir de longe. Um homem clamava por misericórdia e arrebatava a atenção de todos que se dirigiam apressados e curiosos rumo ao alarido.

Em meio a tanto tropel, o menino reconheceu a voz do pai, que veio forte, alta e seguida de um tiro. Correria, gritos, revoada de pombos, tudo se abraçou diante de seus olhos. Um abraço rápido e apertado.

O desespero tomou conta do menino, que agora sim, vira que foi estupidez aceitar tal convite. Desceria do carro em meio à tamanha confusão? Não foi preciso. Lá vinha Manuel, com a arma em punho, arrastando um homem ajoelhado para fora do edifício.

_ “Você vai ter que me pagar, não tem desculpa cabra safado!”, seguido de, “Por favor, Manuel, não me mate, tenha piedade Manuel”!

Medo, vergonha, curiosidade e arrependimento, todos esses sentimentos dançavam na cabeça do menino, uma dança arrastada e desordenada. Ele queria descer do carro, ele queria pedir ao pai para parar, ele queria tomar um sorvete, afinal, agora estava ainda mais quente o dia.

Após muito ranger os dentes e praguejar, Manuel volta para o carro balbuciando palavrões incompreensíveis. Encontra seu filho encolhido entre o banco do carona e o painel frontal. Liga a chave e segue a toda.

O menino se senta novamente, encara as próprias mãos em seu colo e engole todas as palavras que gostaria de dizer naquele momento. Foram parar em algum lugar de seu estômago.

Manuel parece se acalmar, respira fundo e diz aliviado, _ “Vou te pagar um sorvete!”. Dito e feito. Desceu novamente do carro, dessa vez com um andar mais leve, até um pouco frouxo, e voltou com um sorvete de creme, que segurava com a mesma mão que há minutos empunhava uma arma.

O menino segurou o sorvete e arriscou uma primeira lambida, sem gosto e sem graça, só conseguia pensar na cena que presenciara. Olhou de rabo de olho para Manuel que esboçava agora um riso debochado enquanto dirigia. Distraiu-se e no momento em que o carro passou por uma lombada, viu sua bola de sorvete voar pela janela estatelando-se no asfalto quente e ficando para trás.

Manuel se virou para o filho e perguntou com aquele olhar que dizia tanto de si mesmo, _ “Cadê seu sorvete menino?” O menino olhou para Manuel, lembrou-se de tudo o que se sucedeu, do pai com a arma na mão, do fogo que saía de suas narinas, do suor daquele dia inflamado e respondeu prontamente, _ “Estava tão gostoso que eu chupei tudo!”, afinal, a arma ainda estava quente na cinta de Manuel.

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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Chão Colorido

Desde pequena me lembro de entrar em casa e sentir o mesmo cheiro de tinta. Às vezes simplesmente acordava e lá estavam, espalhados, secando no tempo, colorindo o chão. Ficava até mais bonita a sala, o corredor, com vários rostos me olhando, com tipos que pareciam vir nos visitar.

Eu me perguntava como ele conseguia e como era possível tantos rostos pintados em uma única noite. Aí ele me olhava e dizia: cuidado para não pisar. Quantas vezes ouvi essa frase..., como se pudesse fazê-lo. Tomava um cuidado, jamais estragaria, sabia que poderia borrar e que se isso acontecesse, ele jogaria a pintura no lixo.

Vi meu pai pintar velhos, jovens, boiadeiros, índios, camponeses, crianças, pássaros, prédios, poetas, mas o que mais me encantava eram as mulheres, os cabelos sempre cheios de vida, com brincos compridos e olhares ora apaixonados, como se esperassem o grande amor, ora perdidos, misteriosos. Eu costumava olhar as figuras e atribuir a elas um nome, uma profissão, uma vida.

As fases foram muitas, assim como meu pai, respeitando o homem que ele se tornava, os quadros mudavam também. Hoje não vejo mais os personagens como pessoas que pareciam vir nos visitar. Vejo como nós mesmos, qualquer um de nós, vivendo no mundo real, com problemas, com sonhos,  desejos, tudo transmitido em linhas, em cores chapadas, em cenários que antes eram ou claros ou escuros,  mas que hoje são tão vivos quanto os personagens centrais.

Teve um tempo em que as figuras ganharam o mundo, viajaram e foram vistas por muita gente, exibidas aquelas lá..., hoje são menos agitadas, trocam lentamente de lugar nas paredes, ou então se acomodam em fileiras simples para não atrapalhar o caminho. Algumas se guardaram em pacotes bem amarrados, tão bem se guardaram essas, que sumiram misteriosamente.

Meu pai não fala muito sobre os quadros, sentado na prancheta, pinta, coloca para secar, parado em frente namora, distrai-se ouvindo boa música, assovia... , e caso se apaixona, emoldura e coloca na parede, ou dá de  presente a um amigo querido.  O mais triste é que as preferidas dele acabam indo embora, compradas, presenteadas, levadas por um visitante distante e dificilmente são vistas por seus olhos de criador novamente.

O bom de tudo é entrar na casa e sentir o cheiro de tinta, tomar cuidado para não pisar, ver o chão colorido e com sorte ouvir sua voz serena dizendo: gostou? Gostei pai, sempre vou gostar, é tão parte tua quanto minha, é você, somos nós....


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Chão Colorido de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.