Não
era para ser um dia comum. O sol brilhava demais, o vento se fazia alto e forte
demais, e o convite que viria a seguir seria por demais inusitado.
Em
uma casa com tantos, era mesmo de se espantar, que dentre seus onze filhos,
Manuel o escolhesse para acompanhá-lo. O menino iria, de qualquer maneira de
bom grado, não poderia negar-se a um convite como aquele.
Colocou
suas sandálias apressadamente, engoliu um copo de leite e correu.
O som da buzina da velha Rural Willys
anunciava seu atraso. Para acompanhar o forte estampido, vinha de carona o
rosto de Manuel proclamando a quem o fitasse a que viera ao mundo. Tinha
pressa.
Já
a caminho, rumo ao desconhecido, o menino respirou fundo. Ensaiava dentro de
si, como poderia sem despertar maiores precipitações, tomar conhecimento sobre
o destino ao qual era conduzido.
Manuel
era mesmo um bom homem, bom pai, nordestino e político abrasado. Um homem de
gênio imutável, e por isso digno do respeito e também do temor que despertava
em seus convives, principalmente entre os filhos numerosos.
Já
o menino, era mesmo um menino. Filho de Manuel, descendente de nordestino, com
grande respeito e temor pelo pai, sem discernimento político, e curioso como
todos os meninos. Resolveu arriscar. Olhou para o pai de relance e perguntou
dissimulado, como se pergunta sobre o tempo ou sobre o avião, _“Para onde vamos?” Manuel optou por não
responder. Continuou compenetrado ao volante e, após muitas voltas, parou em
frente a uma praça, bem em frente a um prédio baixo.
Desceu
do carro e foi categórico: _ “Fique aqui
e não desça!” O menino obedeceu. Escondeu sua curiosidade em algum lugar
próximo ao peito, e contentou-se em admirar o vendedor de sorvetes que atraia
os passantes com músicas e sorrisos congelados, mais parecia um boneco de
marionetes, riu-se.
Já
fazia cerca de vinte minutos que Manuel descera do carro, o calor fazia o
menino transluzir e pensar se fizera mesmo o certo aceitando o convite, e ainda
mais, se deveria ter concordado, sem se pronunciar, a ficar dentro do carro por
tanto tempo.
Enquanto
se distraía em pensamentos das mais variadas ordens o menino foi interrompido,
juntamente com o vendedor de sorvetes e os demais passantes, com gritos
desesperados que vinham do prédio baixo.
Podia-se
ouvir de longe. Um homem clamava por misericórdia e arrebatava a atenção de
todos que se dirigiam apressados e curiosos rumo ao alarido.
Em
meio a tanto tropel, o menino reconheceu a voz do pai, que veio forte, alta e
seguida de um tiro. Correria, gritos, revoada de pombos, tudo se abraçou diante
de seus olhos. Um abraço rápido e apertado.
O
desespero tomou conta do menino, que agora sim, vira que foi estupidez aceitar
tal convite. Desceria do carro em meio à tamanha confusão? Não foi preciso. Lá
vinha Manuel, com a arma em punho, arrastando um homem ajoelhado para fora do
edifício.
_
“Você vai ter que me pagar, não tem desculpa cabra safado!”, seguido de, “Por
favor, Manuel, não me mate, tenha piedade Manuel”!
Medo,
vergonha, curiosidade e arrependimento, todos esses sentimentos dançavam na
cabeça do menino, uma dança arrastada e desordenada. Ele queria descer do
carro, ele queria pedir ao pai para parar, ele queria tomar um sorvete, afinal,
agora estava ainda mais quente o dia.
Após
muito ranger os dentes e praguejar, Manuel volta para o carro balbuciando
palavrões incompreensíveis. Encontra seu filho encolhido entre o banco do
carona e o painel frontal. Liga a chave e segue a toda.
O
menino se senta novamente, encara as próprias mãos em seu colo e engole todas
as palavras que gostaria de dizer naquele momento. Foram parar em algum lugar
de seu estômago.
Manuel
parece se acalmar, respira fundo e diz aliviado, _ “Vou te pagar um sorvete!”.
Dito e feito. Desceu novamente do carro, dessa vez com um andar mais leve, até
um pouco frouxo, e voltou com um sorvete de creme, que segurava com a mesma mão
que há minutos empunhava uma arma.
O
menino segurou o sorvete e arriscou uma primeira lambida, sem gosto e sem
graça, só conseguia pensar na cena que presenciara. Olhou de rabo de olho para
Manuel que esboçava agora um riso debochado enquanto dirigia. Distraiu-se e no
momento em que o carro passou por uma lombada, viu sua bola de sorvete voar
pela janela estatelando-se no asfalto quente e ficando para trás.
Manuel
se virou para o filho e perguntou com aquele olhar que dizia tanto de si mesmo,
_ “Cadê seu sorvete menino?” O menino olhou para Manuel, lembrou-se de tudo o
que se sucedeu, do pai com a arma na mão, do fogo que saía de suas narinas, do
suor daquele dia inflamado e respondeu prontamente, _ “Estava tão gostoso que
eu chupei tudo!”, afinal, a arma ainda estava quente na cinta de Manuel.
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